Sem a parede dissídio coletivo pode não ser julgado pela Justiça do Trabalho, um absurdo
Quando surge um conflito trabalhista, ele pode ser individual ou coletivo. Nas duas situações, se as partes não conseguem chegar a bom termo, o caminho para que o conflito seja solucionado é o da Justiça do Trabalho, seja nas varas, nos tribunais regionais ou no Tribunal Superior do Trabalho. A greve que se origina de uma pretensão não atendida, como sabemos, é direito constitucionalmente garantido e regulamentado pela Lei n.º 7.783/89; entretanto, deve ser sempre a última das alternativas na busca da solução de um conflito coletivo de trabalho instalado.
Isso porque muitas vezes a greve pode ter consequências desastrosas para os envolvidos, pois paralisa a atividade produtiva, cria tensão entre as partes, expõe eventuais feridas, causa incerteza no seus deslindes, etc. Enfim, é um procedimento que deve ser adotado como última opção, considerando a situação densa e desconfortável que dela brota.
Algumas greves acabam até ocasionando resultados bem diferentes dos objetivos iniciais. E chegam mesmo a ficar fora de controle, de modo que as suas implicações podem ser tremendamente nefastas até para terceiros não envolvidos diretamente no movimento paredista.
Acontece que, de acordo com entendimento majoritário do Tribunal Superior do Trabalho, em dissídios coletivos que ali são julgados originariamente ou em grau de recurso, há a exigência de ser deflagrada uma greve para que a categoria possa ter o seu dissídio coletivo tramitando nas Cortes trabalhistas. É o que passo a explicar.
A Emenda Constitucional (EC) n.º 45, de 2004, alterou o artigo 114 da Constituição federal e em seu parágrafo 2.º fez constar a necessidade de comum acordo para o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica. Ou seja, quando frustrada a negociação coletiva entre sindicatos de trabalhadores e sindicato patronal, ou entre sindicato e empresa específica, o caminho natural a seguir, até 2004, era o sindicato profissional suscitar o denominado dissídio coletivo para que o tribunal apreciasse o aspecto formal do processo, bem como o seu objeto – cláusulas econômicas e sociais –, e, então, decidisse, publicando uma sentença normativa que seria aplicada às partes envolvidas.
O problema surge, após 2004, com a exigência do denominado “comum acordo”. A partir daí, quando fracassada a negociação coletiva numa data-base, o sindicato de trabalhadores suscita o dissídio coletivo, porém a parte contrária contesta a ação apenas alegando a falta de comum acordo entre as partes (exigência do parágrafo 2.º do artigo 11 da Constituição federal) e o tribunal extingue a ação, deixando aquela categoria sem norma coletiva que regule a relação empregado-empregador.
Pois bem, para suprir essa falta de comum acordo, e para que o sindicato tenha o seu dissídio tramitando no tribunal, criou-se jurisprudência no sentido de que há necessidade de greve como um pressuposto processual, conforme decisão do Tribunal Superior do Trabalho a seguir reproduzida e que é parâmetro para vários tribunais regionais.
“Recursos ordinários. Dissídio coletivo de natureza econômica. Comum acordo. Nova redação do § 2.º do artigo 114 da Constituição atual após a promulgação da Emenda Constitucional n.º 45/2004. A Seção Especializada em Dissídios Coletivos deste Tribunal Superior do Trabalho firmou jurisprudência no sentido de que a nova redação do § 2.º do artigo 114 da Constituição Federal estabeleceu o pressuposto processual intransponível do mútuo consenso das partes para o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica. A EC n.º 45/2004, incorporando críticas a esse processo especial coletivo, por traduzir excessiva intervenção estatal em matéria própria à criação de normas, o que seria inadequado ao efetivo Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição (de modo a preservar com os sindicatos, pela via da negociação coletiva, a geração de novos institutos e regras trabalhistas, e não com o Judiciário), fixou o pressuposto processual restritivo do § 2.º do art. 114, em sua nova redação. Nesse novo quadro jurídico, apenas havendo ‘mútuo acordo’, ou em casos de greve, é que o dissídio de natureza econômica pode ser tramitado na Justiça do Trabalho. Recursos ordinários conhecidos e providos” – RO – 1001409 – 90.2015.5.02.0000 – DEJT 24/03/2017 (nós grifamos).
O que se vê é um descompasso, pois, ao invés de propor paz nas relações coletivas, ao decidir com esse fundamento a Justiça do Trabalho, após uma negociação coletiva frustrada, quase que obriga o sindicato profissional a deflagrar uma greve, eventualmente inapropriada e até indesejada pelas circunstâncias, apenas para que a entidade sindical tenha seu dissídio tramitado na Justiça do Trabalho.
É certo que os sindicatos não podem ser impedidos de ter apreciado seu dissídio pelo tribunal, mas ter de se socorrer de movimento grevista para fazê-lo me parece inadequado. Além disso, considerando a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que acabou com a ultratividade das normas coletivas, certamente as categorias profissionais precisarão, em maior número, se acudir dos dissídios perante os tribunais; e em muitos desses casos elas se verão obrigadas a deflagrar uma greve meramente processual para ter o seu direito apreciado pelo tribunal.
É preciso que se encontrem outros caminhos, pois estamos verificando cada vez mais o procedimento esdrúxulo de advogados indo a assembleias para justificar aos trabalhadores que, se não fizerem greve, seu dissídio coletivo poderá não ser julgado pelo tribunal – a meu ver, um absurdo que precisa ser coibido urgentemente.
Cesar Augusto de Mello,
Presidente da Comissão Especial de Direito Sindical da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo (OAB-SP) e
consultor jurídico da FEQUIMFAR
* Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 07 de agosto de 2017.