Pesquisadores alertaram sobre a importância da soberania nacional na produção de fármacos e vacinas para a autonomia do Brasil no enfrentamento à Covid-19
O investimento na soberania nacional para o desenvolvimento tecnológico necessário diante da pandemia é fundamental, mas não tem sido uma prática do governo brasileiro. É o que afirmam os pesquisadores que participaram da live Inovação Tecnológica que o Brasil Precisa, realizada na última quarta (15/07) pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). As críticas ao negacionismo científico do Estado, ao desinvestimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e às proteções patentárias como impeditivos no enfrentamento à Covid-19 também estiveram em pauta.
A conselheira nacional de saúde Ana Lúcia Paduello, da Associação Brasileira Superando o Lúpus, lembrou que a consequência da falta de recursos na saúde pública é a morte em massa da população brasileira. “São milhares de vidas perdidas, milhares de famílias que estão sofrendo com perdas irreparáveis. A crise sanitária escancarou a dependência tecnológica na área da Saúde”, disse, mencionando a moção do CNS em apoio Projeto de Lei N° 1.462/2020, que propõe a liberação de patentes de forma compulsória em contexto de pandemia.
O tema da Inovação Tecnológica tem sido a principal discussão da Comissão Intersetorial de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica (Cictaf) no CNS, que vem propondo estratégias para reversão do quadro atual. Em abril, o CNS recomendou aos Poderes Executivo, Federal e estaduais, que aprovem linhas de crédito para a ampliação da capacidade tecnológica e produtiva dos laboratórios nacionais de medicamentos e insumos para o enfrentamento da Covid-19.
Em defesa das universidades e laboratórios públicos, o professor e pesquisador da área de Desenvolvimento e Inovação em Saúde na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, Carlos Gadelha, afirmou que Saúde é o motor do desenvolvimento.
“Se a gente retomar os recursos subtraídos da Saúde, se fizermos um grande programa de investimento na Atenção Básica, no tratamento de doenças raras, a gente alavanca o sistema produtivo de inovações e conseguiremos dar sustentabilidade estrutural ao SUS”, disse. Para o pesquisador, inovação não significa simplesmente a “última descoberta”, é um conceito amplo e político, que deve ter a capacidade de inclusão de todas as pessoas.
Segundo ele, para garantir o SUS universal, conforme rege a Constituição de 1988, é necessário consolidar o complexo industrial da Saúde. “Não vamos ter um SUS integral se não tivermos uma base de produção de inovação no país. Não podemos ter vergonha da capacidade nacional de desenvolver e absorver tecnologia. Quem não tem conhecimento tecnológico, não sabe nem comprar produtos de fora”, disse. Gadelha explicou também que a produção nacional gera emprego e renda. “O investimento é uma aliado importante para sairmos da falsa dicotomia entre saúde e desenvolvimento. Quem é contra a inovação, é contra a transformação. A gente não pode ter um Estado que esteja com medo, que seja contrário à inovação”, completou.
Monopólios x Acesso à população
Jorge Bermudez, médico, doutor em Saúde Pública e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/ Fiocruz), destacou que inovação tecnológica precisa de mais investimento e não pode estar dissociada do acesso à população – que muitas vezes fica à margem devido aos altos preços praticados pelo mercado.
“O governo está negando a gravidade da crise sanitária no Brasil, com a insistência de promover kits contra a Covid-19 sem efetividade científica comprovada. O CNS tem sido liderança e voz ativa para combater a pandemia”, disse, frisando que o mundo tem feito inúmeras críticas ao Brasil devido ao negacionismo científico. Para ele, “a inovação, seja radical ou incremental, não pode estar desassociada do acesso. A capacitação tecnológica tem que estar acoplada ao conceito de acesso universal”, defendeu.
Abismos que devem ser enfrentados
Bermudez criticou a proteção patentária concedida ao medicamento Sofosbuvir, que gerou monopólio pela farmacêutica norte-americana Gilead. O produto é o antirretroviral responsável por um dos tratamentos mais eficazes contra a hepatite C. “84 mil dólares por tratamento é inacessível”. Segundo ele, o medicamento Remedesvir, que está sendo estudado contra a Covid-19, também pode ser monopolizado pela “indústria da doença”. O médico criticou também a Emenda Constitucional 95/2016 que, só em 2019, retirou R$ 20 bilhões da Saúde, conforme indica estudo da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS.
Contraponto
O conselheiro nacional de saúde Nelson Mussolini, representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI), ao questionar os pesquisadores, defendeu a proteção patentária e a indústria farmacêutica. “Há custos expressivos no desenvolvimento de fármacos e vacinas. Se não tivermos as patentes, não haverá investimentos. É um grave erro [ser contra patentes]. Não é tomando atitudes como a aprovação desse PL [nº 1.462/2020)] que vamos resolver”. Segundo ele, “não há necessidade dessa lei, pois a Lei de Patentes [Lei nº 9.279/1996] já prevê licenciamento compulsório”.
Bermudez respondeu que a discussão era sobre propriedade intelectual em relação ao coronavírus. “Se você acha que podemos fazer como fizemos com o Enfavirenz [antirretroviral], vamos levar 40 anos”, disse. “É uma excepcionalidade. Os produtos relacionados a uma pandemia devem ser considerados automaticamente licenciados, não pode ser monopólio”, disse. Gadelha também respondeu ao conselheiro. “O setor produtivo privado deveria todo dia agradecer à pesquisa pública. Os melhores médicos do país estão na universidade pública”. Para ele, é possível investir com interesse social sem perder a viabilidade econômica.
Mais participações
Ronald dos Santos, conselheiro nacional de saúde representante da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar) defendeu a importância de todos os profissionais da Saúde, promovida pelo SUS, que fez a saúde pública brasileira sair do modelo medicalocêntrico a partir de sua implementação. Segundo ele, os avanços reais estão no setor público, pois há interesse no bem estar social e não no lucro. “O mundo está mostrando em todos os continentes a incapacidade do mercado em resolver as políticas econômicas e sanitárias”.
A conselheira nacional de saúde Lenise Garcia, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reafirmou a necessidade da soberania nacional para a produção de medicamentos e vacinas. “É importante termos um parque tecnológico próprio diante de tantas dificuldades. Estamos olhando para a Fiocruz com esperança no trabalho sobre a vacina para a Covid-19”, disse.
Fonte: Ascom CNS / SUS Conecta.