Em meio à pandemia, quem protege as pessoas com deficiência?

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Esse é o resultado de um sistema socioeconômico que vê na pandemia uma ‘oportunidade’ para matar os não rentáveis e os matáveis”

Por Vitória Bernardes

A partir de 2008, a deficiência passou a ser reconhecida pelo Estado brasileiro não apenas pela presença de uma lesão, doença ou alterações genéticas, por exemplo, mas o resultado dessas condições individuais em interação com barreiras construídas e impostas socialmente. Mesmo essa compreensão existindo há mais de uma década, o enfrentamento a essas barreiras e a busca por acessibilidade seguem sendo a principal pauta do movimento de pessoas com deficiência, afinal: é possível pensar em democracia sem acesso?

Pensando nisso, é necessário reforçar que, além dos duros golpes da Emenda Constitucional 95, da Reforma Trabalhista, da Lei de Terceirização e da Reforma da Previdência, que afetam diretamente políticas à população com deficiência, nos deparamos com ameaças ao nosso direito ao trabalho (através do PL 6159/19), à educação (como o PL 3803/2019), ao acesso universal à saúde (com o Novo Modelo de Financiamento da Atenção Básica) e, inclusive, ao acesso ao Benefício de Prestação Continuada, que garante o mínimo de dignidade às pessoas com deficiência. Em meio a tudo isso, nos deparamos ainda com uma pandemia que ameaça ainda mais as nossas vidas.

Temos poucos dados sobre o coronavírus em pessoas com deficiência, mesmo assim precisamos evidenciar fatores que nos colocam como grupo de risco, seja pelo uso de tecnologias assistivas, necessidade de apoio para atividades básicas, condições de saúde preexistentes ou, até mesmo, a pobreza. Em março, a ONU lançou um alerta sobre Quem protege as pessoas com deficiência? durante essa crise. O texto afirma que “pouco foi feito para fornecer as orientações e apoios necessários às pessoas com deficiência para protegê-las durante a atual pandemia do Covid-19, apesar de muitas delas pertencerem ao grupo de alto risco”.

Para além disso, se faz necessário evidenciar o projeto eugênico do governo federal, que joga na população a responsabilidade por suas mortes, como se o seu adoecimento fosse responsabilidade dos que não têm um “histórico de atleta”, e não o resultado de um sistema socioeconômico que vê na pandemia uma “oportunidade” para matar os não rentáveis e os matáveis.

Para compreender prováveis fatores que interferem na invisibilidade das pessoas com deficiência, destacamos:

  • Enquanto na população total brasileira existem 100 mulheres para cada 96 homens, no segmento da pessoa com deficiência para cada 100 mulheres existem 76,7 homens;
  • 26,5% das mulheres brasileiras são mulheres com deficiência;
  • 30,9% das mulheres negras são mulheres com deficiência;
  • 26,3% das pessoas com deficiência se encontram no Nordeste, região economicamente mais pobre.

Os dados do IBGE (2010) evidenciam que a intersecção entre gênero, classe e raça é fundamental para compreensão da vivência da deficiência. No entanto, o reconhecimento da intersecção dessas identidades ainda possui resistência – originada principalmente pelo capacitismo, que se baseia na ideia de incapacidade integral de corpos com deficiência –, fazendo com que muitas de nossas pautas sigam “genéricas”, como se as pessoas com deficiência tivessem apenas um corpo, sem gênero, sexualidade, cor e idade, por exemplo.

Mesmo que nossa integralidade permaneça negada, estimativas apontam que de 40% a 68% das mulheres com deficiência irão sofrer violência sexual antes dos 18 anos de idade (UNFPA, 2018). De acordo com o Atlas da Violência (2018), cerca de 10% das vítimas de estupro possuíam alguma deficiência e, além disso, 12,2% do total de casos de estupros coletivos foram contra vítimas com deficiência.

Além de pautar essa realidade, precisamos romper com a individualização dessas violências e garantir políticas públicas, principalmente no âmbito do SUS como porta de entrada na (possível) rede de proteção. As políticas públicas precisam compreender a deficiência como um importante marcador social e reconhecer essas violências em nossos corpos, já que muitas vezes, por inúmeras barreiras, não percebemos essas violências ou somos impedidas de denunciá-las. E isso precisa ser feito também durante a pandemia.

Mesmo que o atual governo se esconda através de posições assistencialistas relacionadas às pessoas com deficiência, é necessário evidenciar que o Executivo não apresenta propostas para garantia de nossos direitos, ao contrário, ameaça os já conquistados. Além disso, cabe a nós, mais uma vez, evidenciar a ausência de protocolos de atendimentos de pessoas com deficiência infectadas pela Covid-19, assim como a violação constante do nosso direito ao acesso de informações, já que recursos de audiodescrição, libras, legendas, documentos em meios e formatos acessíveis e linguagem simples são exceção em nosso país. O básico ainda precisa ser exigido, e entender nossos corpos como políticos nos fortalece para o reconhecimento de discriminações e enfrentamentos para garantia e acesso aos nossos direitos.

Vitória Bernardes, Conselheira Nacional de Saúde e Representante da Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME)

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